domingo, 10 de dezembro de 2023

INSTANTÂNEOS XXIV

 

                                    Desenho: Paula Marques

A estação ferroviária de Bayonne estava repleta de gente, muitos eram peregrinos a caminho de St Jean Pied de Port para aí iniciarem o Caminho Francês. No meio da Gare, vestindo a farda do SNCF (caminhos de ferro franceses), Monsieur Dupont e Madame Rousseau desdobravam-se a dar informações, orientações, esclarecimentos aos utentes, desempenhando um papel que devia ser tomado como exemplo em qualquer estação movimentada.

Xaime chegou-se a eles para sacar informações sobre a próxima ligação e pergunta, quase sem sotaque:
- Parlez-vous français?
Monsieur Dupont mira o perguntante com semblante sério e  responde com voz grave:
- Non! Russe.

O episódio serviu como prólogo para amena cavaqueira com os simpáticos e prestáveis ferroviários, e teve ponto marcante quando Inserme, que aprecia jogos com a beleza das palavras e dos seus significados, se dirige a Madame Rousseau e com ar de curioso fingido, a provoca:
- Je me demande Madame: peut-on appeler les dames de Bayonne des “bayonnetes”?
Ela riu-se divertida e acompanhou:
- Ah! oui, mais elles ne sont dangereux que lorsqu'elles se mettent en colère…

Ainda em Bayonne, demos com uma montra que ostentava umas frases banais, todas elas a acabar com um impropério muito utilizado pelos franceses.
A mais bonita é capaz de ser aquela que se pode traduzir por:
"Gosto de ti, porra!"





sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

CAMINHO FRANCÊS: ALGUMAS NOTAS GERAIS (fase1)




Projecto (em curso): Caminho Francês

Início: St Jean Pied de Port

Término: Burgos

Etapas: 12

Partida: 03 de setembro de 2023

Chegada: 14 de setembro de 2023

Distância total: 282 km

 

Peregrinos / Caminheiros:

Aníbal Azevedo, Anselmo Cunha, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Gena Cabaço, Jaime Matos, Joaquim Branco, Manuela Gomes, Nulita Lourenço, Paula Marques, Raul Maia, Teresa Silva.


1. Emoções de primero

2. Duas ou três irrelevantes notas de reportagem

3. Duas ou três relevantes notas sobre cultura e história

4. Notas gerais sobre o Caminho Francês (fase1)


O Caminho Francês é, sabe quase todo o mundo, o mais icónico de todos os Caminhos de Santiago, e a maior parte dos peregrinos começa-o em St Jean Pied de Port.

Grosseiramente, até Burgos o Caminho pode ser dividido em 3 zonas distintas. A primeira, se calhar a mais interessante e bonita em termos paisagísticos alcança Zubiri, na zona pirenaica; a segunda é marcada pelos vinhedos de La Rioja até Najera; finalmente, o planalto (por vezes) monótono de Castilla y León, até Burgos, com excepção das sierras de La Oca e de Atapuerca.

O dia da chegada a St Jean foi molhado. Precisávamos de um primeiro dia seco e fresco para galgar os cerca de 24 mil metros até Roncesvalles. Pois foi o que nos calhou. Um dia fantástico para atacar aquela que, dizem, é a mais dura de todas as etapas do Camino. E é capaz de ser. Se calhar porque se parte da cota 172, trepa-se até aos 1430 metros de altitude durante quase 20 km e, nos últimos 4, baixa-se para a cota 900. Os joelhos e as unhas dos pés não apreciam estas descidas à bruta. Digamos que para cumprir esta etapa é preciso ter “pêtos” e, quem a faz, consegue fazer qualquer uma do Caminho. Precisámos de quase 10 horas para a concluir, mas chegámos a tempo de assistir à missa (alguns) na belíssima igreja do velho mosteiro de Roncesvalles.

No que toca a dureza e alguma dificuldade a requerer cuidados aos caminhantes, são dignos de referência dois pequenos troços. O primeiro surge à chegada a Zubiri. São cerca de cinco quilómetros em piso “especial”, um piso onde apenas as cabras se sentem no seu meio. Este troço apresenta elementos que deverão ser muito interessantes para qualquer geólogo, desafiante para o peregrino, em geral, que tem de caminhar de olhar fixo e atento no pedregoso e perigoso piso (chamemos-lhe assim, para facilitar). É nestas ocasiões que são exigidos três requisitos ao caminhante: bom calçado, sentido de equilíbrio e paciência. Dá ideia que a natureza caprichou ali na geologia, de propósito, para que os peregrinos não se esqueçam que a vida, tal como o Caminho, tem de ser percorrida com cuidado, com preceito, sem pressa.

Foi neste trajecto que demos com uma figura esguia, Francesco era o seu nome, italiano de Firenze, médico (aposentado), 72 anos. Há horas de sorte e este vero italiano teve uma tremenda sorte na hora em que o alcançámos. Caminhava visivelmente debilitado, com passo inseguro, a ameaçar cair a qualquer momento. Ainda por cima, nem sequer tinha qualquer garantia de conseguir leito e duche em Zubiri. Pois que fique registado nos anais que o grupo de solidários lusos lhe arranjaram cama no mesmo albergue e o libertaram do peso da mochila até lá.

O outro ponto “duro” é a descida (são sempre as descidas abruptas que marcam a diferença), desde o Alto del Perdón, muito em cascalho, tipo “piedras rolantes”.

Vencida a pequena subida que sai de Estella, há 2 pontos que merecem referência. O primeiro é La Forja de Ayegui, uma oficina-exposição com a expressão da criatividade de Jésus Angel. Este señor faz autênticas obras de arte na transformação de ferro velho. A segunda, algumas chancas à frente, surge a Fuente del Vino, junto ao Mosteiro de Irache, que nos “obriga” a parar. Parece que nos tempos antigos, os monges beneditinos acudiam com este remédio aos cansados peregrinos que ali aportavam. As Bodegas Irache, actuais proprietárias das santas e abençoadas vinhas assumiram essa tradição acalmando gratuitamente a sede dos modernos peregrinos, com o seu vinho rosado, suave e fresco no paladar. Em média, nos meses mais concorridos, são consumidos cem litros por dia.

La Rioja é terra vitivinícola, região de excelência de produção de vinho em Espanha. Muitos milhares de hectares cobrem aqueles vales abertos e suaves colinas. Uma vez que estávamos em plena época das vindimas, tiveram estes peregrinos a oportunidade de depenicar múltiplas e variadas castas de uvas, tintas e brancas, todas docinhas.

Segue-se o planalto monótono de Castilla. As vinhas dão lugar aos extensos campos de cereal e girassol, árvores raras, sombra apenas a que vinha do céu emprestada por nuvem caridosa, menos na sierra de la Oca, e depois Atapuerca que anuncia a antiga e leal cidade de Burgos.



















segunda-feira, 23 de outubro de 2023

CAMINHO FRANCÊS (1) - DUAS OU TRÊS RELEVANTES NOTAS SOBRE CULTURA E HISTÓRIA

         Desenho: F. Micaelo


Projecto (em curso): Caminho Francês

Início: St Jean Pied de Port

Término: Burgos

Etapas: 12

Partida: 03 de setembro de 2023

Chegada: 14 de setembro de 2023

Distância total: 282 km

 

Peregrinos / Caminheiros:

Aníbal Azevedo, Anselmo Cunha, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Gena Cabaço, Jaime Matos, Joaquim Branco, Manuela Gomes, Nulita Lourenço, Paula Marques, Raul Maia, Teresa Silva.


1. Emoções de primero

2. Duas ou três irrelevantes notas de reportagem

3. Duas ou três relevantes notas sobre cultura e história

4. Notas gerais sobre o Caminho Francês (fase1)

                                                

                                                        Desenho: Paula Marques

Primeira e mais relevante nota: é impossível fazer o Caminho sem tropeçar no magnífico património histórico, sobretudo religioso, resultado, entre outros fatores, do vigor, da estratégia e, principalmente, dos recursos à disposição da Igreja Católica Apostólica Romana em Espanha. Não pode o peregrino deixar de ficar impressionado com a quantidade e grandiosidade das igrejas e catedrais que pontificam em todas as cidades e pueblos por onde o Caminho segue. Quase que incomoda ver tamanha monumentalidade e imponência exterior, assim como a opulência, a riqueza artística e a diversidade estilísticas no interior, em aldeias que nem sequer são de grande dimensão.

E se há património, há história, há cultura.

   Desenho: Nulita Lourenço (Puente La Reina)

Para a nossa história, selecionemos então duas ou três relevantes notas sobre cultura e história locais desta nossa jornada, a primeira, no Caminho Francês.

Desde logo, St Jean Pied de Port. Esta ville, actualmente francesa, mas que já foi de Navarra e, conserva a cultura e língua basca, ocupa uma posição estratégica para quem, ao longo de muitos séculos, quis atravessar o Pirinéus.

Faltará sempre serenidade ao peregrino para apreciar convenientemente a riqueza patrimonial do local, boicotado pelo ambiente festivo, e pela adrenalina associada à expectativa de começar o caminho bem cedinho na manhã seguinte. Quem resiste e se mantém sereno – como estes lusos albicastrenses – sempre arranja tempo para, pelo menos, visitar a Igreja de Notre-Dame (sec. XIII) e fazer um tour pela cidadela (sec. XVII).

St Jean marca o início icónico do Caminho Francês e é lá que está instalada uma oficina de peregrinos onde todos vão obter o primeiro carimbo e dali partem, através da mítica porta de Santiago (St Jacques, para os franceses) à conquista dos Pirinéus, por caminhos calcorreados  desde há milénios. É plausível que Iberos, Celtas, Romanos, Suevos, Vandalos, Alanos, Visigodos por ali tenham transposto os Pirinéus.

Foi seguramente por estes trilhos que nos conduzem a Roncesvalles (Valcarlos) que o exército de Carlos Magno terá retirado, derrotado, corrido da fracassada incursão a territórios bascos e mouros. Pese embora a importância que a história reconhece a Carlos Magno para a formação da Europa, as crónicas relevam como marcante a batalha de Roncesvalles, no longínquo ano de 778, na qual terá perecido o lendário Rolando, um dos guerreiros medievais mais icónicos, inspirador de lendas, canções e óperas (https://worldvaticano.wordpress.com/carlos-magno/).

Por esta mesma rota marcharam os poderosos exércitos de Napoleão, provavelmente a toque de caixa e sem botas de caminhada Merrell, com ordens para invadirem Espanha e prosseguirem para Portugal, e por ali regressaram a casa em muito menor número mas carregados com o muito espólio roubado.

São estas pedras carregadas de história, enfim, no piso do caminho, suporte centenário de ponte, ou artisticamente alinhadas num capitel, que agora testemunham a passagem de muitos milhares de pacíficos peregrinos rumo a Compostela.

A região, Navarra, é rica em história, pois. A sua identidade enquanto comunidade foi sendo construída e moldada na confluência de uma matriz de elementos, com expressão, também, no vigor que mantêm algumas tradições (exemplo: a Festa de San Firmin e similares), e, sem pertencer ao “país”, o basco como segunda e oficial língua.

Em Pamplona, capital, são justas duas referências especiais (e nenhuma deles é a Festa de San Firmin). A primeira é que, sobretudo para quem gosta de literatura, não deixa de ser algo emotivo tomar um viño tinto num local conhecido como o rincón de Ernest Hemingway. Terá sido naquele ambiente que ele se inspirou para alguns dos seus escritos para o Nobel da Literatura de 1954.

Deu-se ainda o caso, feliz, de nos ter sido concedido o privilégio de acompanhar a degustação de um tinto de La Rioja, com uma demonstração de cultura local/regional digna de realce. O dia era solarengo, a Plaza del Castillo fervilhava de gente. No coreto, o quarteto de sopros desenvolvia algumas músicas tradicionais, enquanto uma multidão de navarros, séniores, jovens, crianças, acompanhava com danças bascas/navarras numa coreografia razoavelmente sincronizada, algo muito próximo de um flashmob (mil perdões pelo anglicismo). Lindo de se ouvir e ver.

Na mesa ao lado, sentavam-se quatro senhoritas doñas para cima de sexagenárias, tomando um thé. Metemos conversa. Entre outras curiosidades, quisemos saber, com um laivo de provocação, se Pamplona pertencia ao país basco. A resposta foi peremptória e taxativa: No! Claro que no!”. Ainda argumentámos que estávamos a assistir a uma demonstração da cultura basca, e que as placas nas ruas e estradas tinham todas os dizeres em castelhano e basco… “Qué no!” ripostaram convictamente as pamplonenses senhoras. “Ellos lo quieren, y hay muchos bascoparlantes, pero Navarra es Navarra”.

Não menos relevante, foi a sorte que calhou a estes lusos peregrinos em Viana, segunda feliz coincidência, segunda demonstração da vitalidade identitária e  cultural deste povo e desta região de Navarra. Era o primeiro dia das festas de nossa Senhora das Neves que se prolongariam por uma semana, e cujo programa incluíam as famosas largadas de toiros pelas ruas, à semelhança de Pamplona, as mesmas que tanto cativaram Hemingway. 

O cenário tinha algo de surpreendente e, mesmo de espectacular. Todos os habitantes de Viana se apresentavam trajados com a mesma indumentária: calça e camisa brancas e lenço vermelho. Os únicos seres que destoavam eram estes humildes mas curiosos lusos peregrinos. Curiosos e atrevidos, misturaram-se sorrateiramente na multidão que se aglomerava na praça do Ayuntamiento, escutaram atentamente os discursos em basco da Senhora Alcaldeza, registaram em video o foguete que ela apichou para dar início oficial às grandiosas festividades em honra de Nossa Senhora das Neves, acompanharam os "Viva Viana" que a turba gritava em uníssono, e, até se puseram ao despique com os Vianenses de todas as idades, a ver quem apanhava mais caramelos, dos milhares que foram atirados à rebatina para o meio do povo, desde a varanda do autárquico edifício.







Viana justifica uma outra nota com uma bem relevante carga histórica. É na localidade que está sepultado César Bórgia. Tinha esta figura uma particularidade única: era filho de Papa. Sim, o Papa Alexandre VI, 214.º chefe maior da igreja Católica entre 1492 e 1503 era o senhor seu pai. Para além de ser filho de quem era, chegou o rapazinho, ainda jovem, a Cardeal. Aborrecido, decidiu abandonar a carreira eclesiástica para se dedicar à carreira militar, trocando, pois, o encarnado barrete cardinalício pelo cinzento metálico elmo, algo que, presume-se, lhe dava mais satisfação, tendo-se envolvido em múltiplas pelejas até ser morto numa delas em 1507. Rezam as crónicas que ele conviveu com Leonardo da Vinci, e, Maquiavel ter-se-á inspirado nele para escrever a sua obra maior “O Príncipe”. Este César terá sido uma personagem e tanto. E ali estavam os seus restos mortais, na Igreja de Santa Maria em Viana.

 

    Monasterio de Irache

                                       Puente La Reina


    Monastério de Santa Maria La Real de Najera

    Catedral de Burgos

terça-feira, 3 de outubro de 2023

CAMINHO FRANCÊS (1) - DUAS OU TRÊS IRRELEVANTES NOTAS DE REPORTAGEM

 



Projecto (em curso): Caminho Francês

Início: St Jean Pied de Port

Término: Burgos

Etapas: 12

Partida: 03 de setembro de 2023

Chegada: 14 de setembro de 2023

Distância total: 282 km

 

Peregrinos / Caminheiros:

Aníbal Azevedo, Anselmo Cunha, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Gena Cabaço, Jaime Matos, Joaquim Branco, Manuela Gomes, Nulita Lourenço, Paula Marques, Raul Maia, Teresa Silva.


1. Emoções de primero

2. Duas ou três irrelevantes notas de reportagem

3. Duas ou três relevantes notas sobre cultura e história

4. Notas gerais sobre o Caminho Francês (fase1)




No primeiro de setembro, madrugada, partida, largada, fugida até Burgos onde ficaram as viaturas à nossa espera; comboio até Donostia / San Sebastián; autocarro até Bayonne; comboio até St Jean.

A primeira nota de reportagem ocorre logo na gare de Burgos: o comboio das 10:37 deu entrada na linha 1 duas horas depois da hora a que devia. O atraso provocou 2 contratempos: obrigou à compra de novo título de transporte na ligação entre Donóstia e Bayonne, e, mais grave, obrigou também à troca de almocinho tranquilo por uma frugalidade de peregrino pelintra à base de porcarias ensacadas.

O contratempo do tempo havia de ser compensado com o tempo. Atmosférico. Isto porque, se à chegada a St Jean choveu todo o santo dia, depois, em todos os 12 dias seguintes, aqueles em que ela, a aguinha, quando é muita e forte, chateia qualquer peregrino que se preze, só nos havia de fazer umas leves coceguinhas durante uns minutitos algures no terceiro ou quarto dia.

Ainda na gare de Burgos, segunda nota, as regras e procedimentos de segurança a que os passageiros são sujeitos no acesso à plataforma são muito idênticas às de qualquer aeroporto.  As pessoas são encaminhadas para o pórtico detector de metais, as mochilas têm todas de passar na maquineta de raio X. Se não tivéssemos sido avisados a tempo, teríamos sido irremediavelmente espoliados das nossas navalhinhas de peregrino cujas folhas medissem mais de seis centímetros. Foi o que aconteceu à naifeta do Aníbal esquecida no fundo de um dos bolsos da sua mochila, remetida para reciclagem. De resto, nas mochilas não foi detectado nenhum objecto perigoso para a segurança de Espanha.

A terceira nota de reportagem vai para a viagem de comboio entre Bayonne e St Jean. Um golpe de sorte empurrou-nos para a primeira carruagem, a mesma onde do lado de lá da divisória em acrílico transparente se sentava o maquinista, tendo-nos sido oferecida a mesma vista de frente do percurso da linha. Nunca antes, ao longo da sua longa vida de passageiros de comboio, nenhum destes tugas tal tinha experienciado.

Nota quarta para a verdadeira indústria em que se está a tornar o Caminho de Santiago, constituindo o caminho Francês o seu expoente. Dizem as estatísticas que, principalmente nos meses de maio, junho, setembro e outubro, St Jean Pied de Port é uma autêntica Babel. E isso era bem visível nesse dia 2 de setembro de 2023, com as suas ruas  pejadas por uma verdadeira multidão, proveniente da mais variadas latitudes.

Ah! se tivéssemos tido vagar, teríamos promovido ali uma antecipação da Assembleia Geral da ONU, e resolvido facilmente a questão climática e a guerra na Ucrânia. E, nada custa, haveriamos de ter aprovado uma moção para a redistribuição da riqueza no mundo e acabávamos com a fome.

Quinta e última nota para a gastronomia. O padrão da refeição em Espanha é ligeiramente diferente do que vinga em Portugal. Nuestros hermanos primam pela variedade nas entradas que lá chamam de primero: enquanto nós nos ficamos por uma malguinha de azeitonas e pela sopinha, eles oferecem meia dúzia de opções. Claro que há sempre os esquisitos que afiançam que jamais trocariam uma boa sopinha de nabiça por uma tortilla de patata ou por meia dúzia de calamares.

Bem, o gaspacho não conta para estas contas. E, obviamente, o caldo gallego também não. E entende-se bem porquê: o gaspacho é irmão do nosso, e o caldo é primo da sopa da pedra.

Mas, por lá, às vezes, sentimos um certo complexo de superioridade no que toca à gastronomia em geral, ao menu Peregrino em particular, muito por causa de os pratos serem quase todos servidos com acompanhamento de batatas fritas. Foi o caso do jantar no Restaurante Posada, em Roncesvalles (na companhia das italianas Mara e Moina e da americana Hope de Las Vegas). De primero, foi-nos oferecido um creme de cor verde e de sabor indefinido, mais um barranhão de massa tipo macarrão cujo tempero faria chumbar um aluno do primeiro ano de culinária de qualquer escola profissional e imediatamente aconselhado a dedicar-se à costura. De segundo, truta assada, com… batatas fritas. Dedução lógica: devem passar por ali muitos ingleses, chatos e exigentes, avessos a um bom arroz e a uns saudáveis legumes. Mas nós, comemos tudinho, sem reclamar.


domingo, 24 de setembro de 2023

CAMINHO FRANCÊS (1) - EMOÇÕES DE PRIMERO

 



Projecto (em curso): Caminho Francês

Início: St Jean Pied de Port

Término: Burgos

Etapas: 12

Partida: 03 de setembro de 2023

Chegada: 14 de setembro de 2023

Distância total: 282 km

 

Peregrinos / Caminheiros:

Aníbal Azevedo, Anselmo Cunha, Conceição Pires, Elsa Maia, Fernando Micaelo, Gena Cabaço, Jaime Matos, Joaquim Branco, Manuela Gomes, Nulita Lourenço, Paula Marques, Raul Maia, Teresa Silva.


1. Emoções de primero

2. Duas ou três irrelevantes notas de reportagem

3. Duas ou três relevantes notas sobre cultura e história

4. Notas gerais sobre o Caminho Francês (fase1)



1. Emoções de primero


Guardei esta foto para o fim. 

Apesar de ser uma foto "pesada" ela representa muito do Caminho.

O arame farpado simboliza as dificuldades do Caminho, as gotas de orvalho, as lágrimas derramadas. O Caminho ensina-nos, que mesmo chorando, as agruras de o percorrermos só são dificuldades se nós deixarmos que nos vençam. 

A Cruz de Ferro simboliza a fé que nos move. Religiosa, espiritual, superação ou física, a "Fé" de cada um, é única e pessoal e só cada um interessa e move. 

O nevoeiro representa a incógnita do futuro. Sabemos o que queremos e o que nos move. Dissipem o "nevoeiro" com um sopro de vento de esperança por um mundo melhor. 

Os 3 peregrinos juntos representam-nos a nós. Sozinho vou mais rápido, mas em equipa vou mais longe, e será com a vossa presença, amizade e união que faremos este e outros Caminhos da vida. 

Por fim, o que não está na fotografia. A Alegria. De termos chegado ao fim, de termos partilhado bons momentos, com pessoas fantásticas, de termos vívido dias únicos e irrepetíveis.

Fernando Micaelo



Existem momentos que irão perdurar no tempo. Ficarão como memórias.

Estes dias, e não foram assim tão poucos, fizeram-nos pensar, reaprender a nós próprios, mas também aos outros. Dias intensos.

Onde esteve presente a alegria e a lágrima.

Onde esteve a dor e o sorriso.

Onde esteve o cansaço e a plenitude.

Onde esteve a solidão e a união.

Onde esteve a pessoa e o grupo.

Mas foram dias gratos e cheios.

"Nós chegamos. Por isso sente o prazer de cada passo dado e não te preocupes com aquilo que tens ainda de superar.

Não temos nada à nossa frente, apenas um Caminho para ser percorrido a cada momento com alegria ".

Jaime Matos

 

Existem experiências realmente transformadoras e que só conseguimos deixar que aconteçam quando saímos da nossa zona de conforto. Quando provamos a nós próprios que quando queremos, fazemos acontecer.

Fazer o Caminho de Santiago é muito mais que caminhar.

E, tal como na vida, nesta aventura de 14 dias tivemos tempo e oportunidades para tudo: rir, chorar, partilhar e conhecer pessoas novas com histórias inspiradoras.

Ao mesmo tempo fizemos um mergulho na história de vida de cada um, para deixar no Caminho o que era para ficar ali e conseguir aceitar, honrar, integrar e trazer carinho e compaixão ao que somos hoje.

Aos seres humanos extraordinários que partilharam comigo esta aventura, sinto-me profundamente grata por me terem acompanhado.

O verdadeiro caminho começa agora.

O Caminho da Vida.

Trazer a força interior que redescobrimos para fazer as mudanças que precisamos e viver uma vida mais leve e alinhada com o nosso coração.

Seguimos juntos

Paula Marques

 


Dizem que quem regressa de uma viagem não é a mesma pessoa que partiu e, não é mesmo. Somos a soma do que vivemos, como vivemos e com quem vivemos.

Que experiência incrível!!!

Bem hajam, maltinha. Adoramos estes dias convosco.

Teresa Silva

 


Amigos, foram dias cansativos, preciso de férias, mas foram dias inesquecíveis!!!

Obrigada a todos, pela partilha, ajuda, apoio e risadas.

Gena Cabaço

 


Queridos amigos, como sempre caminhar ao vosso lado é sempre um gosto. Foram uns dias híper/mega cansativos mas maravilhosos, uns mais alegres outros mais tristes ... mas o caminho faz-se caminhando e se não houvesse dificuldades no caminho provavelmente ele não nos levava a lado nenhum

Obrigado a todos sem exceção, por todo o apoio e ajuda do fundo do coração.

Cá estamos à espera do próximo.

Manuela Gomes

 


Nunca é fácil escrever sobre dias tão intensos. A extraordinária frase “sozinho vou mais rápido, acompanhado vou mais longe” talvez reflita o que todos nós pensamos.

E nós fomos muito longe. Somos todos vencedores.

Partilhámos momentos fantásticos, cruzámo-nos com pessoas admiráveis, tenha sido em Viana, com a grande multidão ou tenha sido em Agés, um pequeno recanto que vai ficar no nosso coração. É difícil escrever sobre dois marcos do nosso caminho, a imponente Catedral, ou o estrondoso amontoado de palha.

O Abraço final não é mais que um reforçar de Fé, de Amizade, do sentimento forte que nos une, que o Caminho ajuda a fortalecer.

Bem hajam por tudo, pelo vosso apoio, pelo vosso carinho e pela vossa amizade.

Hoje estamos um pouco mais “ricos” do que estávamos no dia 1 de setembro.

Elsa Branco

 


Sou mais de números! E chato! É só para dizer que gosto muito de vocês!

Joaquim Branco



segunda-feira, 18 de setembro de 2023

INSTANTÂNEOS XXIII

 


É mais ou menos universal: quando se pretende uma fotografia de grupo com toda a gente sorridente combina-se que todos sejam apanhados a “dizer” cheese, whisky, batata, pepsi, enfim, qualquer esgar da boca que a máquina capte como expressão de felicidade.

Em Agés, pequena aldeia com 25 residentes habituais, uma igreja datada de 1492 mandada construir pelos reis católicos Fernando e Isabel, um albergue e 3 restaurantes, quisemos registar com uma foto de grupo a simpatia de Doña Amapolla e seu marido António.

Quando abordada sobre a eventualidade de nos fornecer o jantar, Amapolla revelou-se o estereotipo daquela personalidade que junta alegria, simpatia, extroversão, vitalidade, energia, liderança (que o diga António, pobre António), e, sem papas na língua, informou convicta:

- Aquí podéis comer comida casera, productos naturales, yo misma la cocino, y quiero trataros divinamente; pero si quieres comer mierda, puedes ir a otro lado.

Os argumentos, pessoais e gastronómicos, pareceram-nos imbatíveis. Aceitámos. E fizemos bem, porque acabámos por degustar uma das melhores refeições naqueles 13 dias que já levávamos de Camino. É verdade que, de primero, a sua receita casera da “sopa” de legumes incluía uma dose generosa de pimentón de la vera que lhe conferia uma travo algo picante, mas, era uma sopa honesta. De segundo, estava tudo igualmente muito saboroso.

De maneiras que, na manhã seguinte, depois do desayuno que também ela nos forneceu, e imediatamente antes de partirmos para a última etapa que nos levaria à catedral de Burgos, foi o simpático e prestável casalinho convidado a registar o daguerreotipo para memória futura. 

E, claro, ela não abdicou de comandar a cena.

Sem nos avisar, em vez do habitual cheese ou patata:

- Todos conmigo ahora: CLITORIS.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

INSTANTÂNEOS XXII


Peregrino que é peregrino janta frugal e deita-se cedo, que no dia seguinte é dia de trabalho árduo. Ele sabe bem que não é aconselhável exagerar nas proteínas animais, deve ser contido nas calorias etílicas. Bastas vezes, admite-se (assumindo aquela posição estereotipada do baixar a cabeça e olhar de lado), estes peregrinos prevaricam. Desavergonhadamente.

Com a sensatez que o caracteriza e define, Xaime contratou uma sopa para cada uma das duas noites que dormimos em Silleda. Para a história será secundariamente relevante que as ditas pudessem ser classificadas como tal. Na verdade, aquilo que a senhora galega nos apresentou, com toda a simpatia e boa vontade não pode, nunca por nunca, entrar na categoria de sopa, no exigente padrão português/beirão do que é um caldo. Vá lá! Poderá aceitar-se que são da família. Afastada.

A primeira consistia num caldo de água quente no qual boiavam, em cada prato, meia dúzia de pequenos cubos de nabo, uma dezena de pedaços de alho francês cortado grosso e três folhas de espinafre esfarripadas. Não! Não tinha base de courgete e/ou chuchu e/ou abóbora e/ou cebola e/ou alho e/ou cenoura e/ou batata… nada! Tão pouco foi adicionado um fio de azeite na fervura. Só faltava estar ensossa. E estava. Ponto a favor: aconchegadinhos com ela, o descanso nocturno parece que até foi de fracos roncos.

Na segunda noite, fomos brindados com uma espessa massa de cenoura – simplesmente cenoura, sem absolutamente mais nada - daquelas que quase aguenta a colher espetada. Os nossos olhos, consta, ficaram exageradamente bonitos.

Mas o mais relevante para este instantâneo veio com o episódio do pagamento. Para evitar a taxa de levantamento no ATM, a nossa Manela pediu que lhe entregássemos a contribuição de cada um, e ela pagaria a totalidade com o seu cartão.

Já todos tínhamos abandonado o estabelecimento a caminho do albergue quando os últimos reparam que a simpática galega fazedora de “sopas” especiais vem apressada e ar aflito no nosso encalço. Visivelmente incomodada, pergunta quem é que ia pagar a conta.

Rapidamente e com a argúcia de quem tem o bandulho cheio de pasta de cenoura se dá pela mancada: desconhecendo a combinação e porque a Manela não se lembrou de a informar, a senhora tinha debitado apenas a parte dela na sua maquineta.